As empresas do setor de food service que desejam se expandir têm diversas opções: podem apostar em delivery; restaurantes instalados em shoppings, ruas ou dentro de empresas, hospitais e indústrias; quiosques; fornecimento terceirizado para empresas correlatas (um especialista em sobremesas pode abastecer um restaurante a la carte, por exemplo); entre outras oportunidades.
Atualmente, vê-se o crescimento de uma modalidade que se apresenta muito vantajosa, a das dark kitchens (também chamadas de ghost kitchens e cloud kitchens). O modelo não tem um conceito único definido, mas observa-se que, na prática, elas estão operando em dois modelos: aquele no qual a marca monta uma cozinha exclusiva para sua operação, ou seja, ela produz e comercializa seus alimentos para serem entregues aos clientes da marca, ou aquele em que ela é multimarca e multiculinária, num espaço compartilhado.
Quando existe esse espaço compartilhado, ele pode ser dividido em diversas cozinhas ou ter uma única, na qual várias marcas congregam do mesmo ambiente. Esse modelo é uma analogia ao co-working, dessa forma há uma cozinha que é compartilhada com outras marcas e culinárias para prestação de seus serviços.
Nesse caso, o empresário paga ao dono do estabelecimento um aluguel pela cessão do espaço e infraestrutura. A Rappi, empresa especializada em entregas, já tem algumas Cloud Kitchens.
A dúvida do empresário do setor de food service, com tantas opções para expansão, é: que tipo de contrato eu devo firmar com meu parceiro de negócios para implantar cada uma das modalidades de expansão da minha marca? E, então, surgem o Licenciamento de Marca e a Franquia.
Sempre existiu uma grande polêmica entre a diferença entre Licenciamento de Marca e Franquia e os limites de cada modalidade de negócio. E, apesar de o mercado entender que há diferenças importantes entre os dois, a lei 8.955/94, que regularizou as franquias no Brasil até março de 2020, impedia que empresas operassem sob o licenciamento sem se preocuparem em infringir a lei.
A lei antiga abarcava todo tipo de negócio associado ao uso de marca; tanto fazia se havia transferência de know-how ou não. Era uma fotografia do mercado de franquias da época – segunda metade da década de 1990 – quando o know-how perdia importância para a marca e para o próprio produto que representava. Fica claro que a intenção do legislador foi abraçar esse tipo de negócio que surgia naquele momento e que não contava com uma lei específica até então.
Porém, a nova lei de franquias (13.966/19), em vigor desde março deste ano, veio tornar mais claro um ponto importante para os negócios que licenciam marcas no Brasil. É que o artigo 1º explicitou que, para ser considerada franquia, uma marca obrigatoriamente deve oferecer transferência de know-how de gestão:
Lei 13966/19
Art. 1º Esta Lei disciplina o sistema de franquia empresarial, pelo qual um franqueador autoriza por meio de contrato um franqueado a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual, sempre associados ao direito de produção ou distribuição exclusiva ou não exclusiva de produtos ou serviços, e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem caracterizar relação de consumo ou vínculo empregatício em relação ao franqueado ou a seus empregados, ainda que durante o período de treinamento.
Para que se entenda melhor a questão, primeiro é necessário que se entenda as diferenças entre Licenciamento e Franquia:
Licenciamento – É o direito de uso de direitos de titularidade do chamado licenciante; pode incluir marca, layout característico dela, conjunto-imagem. É um contrato atípico – assim como o de franquia – mas sua característica mais marcante é a de que não há transferência de know-how de gestão. O contrato é simplificado e relacionado ao uso da marca. É indicado para negócios em que o operador já possui conhecimento do mercado e deseja produtos ou serviços de uma marca de sucesso para agregar ao seu negócio ou mesmo para trabalhar com exclusividade, mas sob suas próprias regras operacionais. Não é benefício para o licenciado converter sua marca, já existente, em uma franquia. Exemplo típico são os modelos loja dentro de loja.
Franquia – Na franquia, replica-se um negócio de sucesso, com todos os seus detalhes. Além da autorização do uso da marca, o franqueado recebe know-how e tecnologia da franqueadora, suporte permanente e atualizações para si e sua equipe. O conceito é formatado, bem como os fornecedores são homologados, o atendimento é padronizado e os franqueados têm pouca autonomia para alterar as características do negócio. Trata-se de um formato ideal para quem deseja reproduzir um negócio já testado, com riscos mitigados em razão da experiência já adquirida pelo franqueador. Por isso, é indicada para quem nunca operou um negócio ou para quem deseja atuar em um novo ramo, com riscos menores quando comparados ao empreendimento solo.
Apesar de as diferenças serem bastante claras, até a nova lei entrar em vigor, as modalidades eram confundidas pelo entendimento da lei antiga, que deixava a transferência de know-how não como obrigatoriedade, mas a critério de cada empresa:
Lei 8955/94 (lei antiga)
Art. 2º Franquia empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício.
A nova lei distinguiu definitivamente as modalidades, deixando claro a quem optar por elas e quais são suas obrigações.
Assim como as franqueadoras de alimentação atuam com diversas formatações de franquias – como quiosques, lojas de diversos tamanhos, franquias homebased, microfranquias e outras – é possível que algumas delas ofereçam licenciamento em suas carteiras de negócios. Para isso, é necessário que se crie essa modalidade dentro da empresa, com critérios e contratos separados, até por conta da forma como se exploram os territórios. Mas, se pensarmos no Brasil, no tamanho desse País, parece-nos bastante providencial essa oportunidade trazida pela nova Lei.
O conceito de store-in-store, praticado pelas franqueadoras, pode ser considerado licenciamento, por exemplo. Quando uma marca implanta um corner dentro de uma loja, não precisa transferir know how. Trata-se apenas do fornecimento de produtos e isso pode ser licenciado, não havendo necessidade de ser uma franquia.
Dark kitchens seguem o mesmo raciocínio, porque o licenciado já sabe como operar aquele mercado. É uma relação que independe de transferência de know-how e tecnologia, então, é licenciamento. E, ainda que o licenciador tenha que passar algum treinamento de produto e seja necessário realizar adaptações na cozinha para que se atenda às especificações da marca, não é necessário que se haja uma transferência do know-how de gestão, uso do software, suporte e supervisão de campo, homologação de fornecedores (não obrigatoriamente), entre outros aspectos inerentes ao sistema de franchising.
Além deste exemplo, existem outras situações que podem tornar-se licenças, estudando-se caso a caso. O importante é saber que as possibilidades são variadas e que é possível distinguir franquia de licenciamento, oferecendo ao licenciado e ao franqueado exatamente a parceria que cada um deles precisa, adequando-se o contrato ao modelo de negócio.
Thaís Kurita é advogada especializada em direito empresarial com atuação em franchising e varejo. Atende, há mais de 20 anos, importantes redes de franquia do Brasil.
Fonte: Gazeta do Povo